CUSTÓDIO CASTELO
ENTREVISTA LEONEL BARATA
Versão integral:
Quem foi o músico intérprete de guitarra portuguesa que mais te influenciou?
Ao contrário do que a maioria das pessoas pensam, no Carlos Paredes, que foi importante para mim mais tarde e comecei pelo pai dele, pelo Artur, mas efetivamente, o grande influenciador, digamos assim, de tocar guitarra foi José Luís Nobre Costa.
Eu tocava guitarra acústica e eletroacústica, estava a fazer entretenimento em Cascais, num hotel onde fazíamos música, num bar, lembro-me que o nosso teclista pianista fazia anos e convidou-nos para jantar, era um domingo. Tocámos até à meia-noite, e lembro-me de ele dizer, que o único sítio que havia para comer era numa casa de fados, que era a casa do Rodrigo, casa Dom Rodrigo, ou seja, Forte de Dom Rodrigo, onde tocava o António Parreira, o Francisco Gonçalves e o José Luís nobre Costa.
Na casa dos meus avós maternos ouvia-se fado, o meu avô era militarista, aí de alguém que falasse quando surgia um fado na rádio, nem os cães podiam ladrar.
E é nesta casa de fados que eu fiquei com este com “este choque” de ouvir a guitarra portuguesa pela primeira vez, em que me arrepiei tanto, que, portanto, não passou. Na altura estava a estudar na escola Industrial e Comercial de Santarém e lembro-me de passar por uma por uma rua, que numa montra, tinha uma guitarra portuguesa. Entrei e a primeira coisa que fiz ir tentar comprar a guitarra, que tinha marcado 12500 escudos. O senhor disse que era uma peça de adereço, mas debati-me pelo facto de ter preço marcado e lá consegui. E depois, como claro, não sabia nada da afinação da guitarra nem técnica, levei a guitarra para casa, afinei como se fosse uma viola, coloquei um piezo, liguei a um amplificador, fazia imensa distorção, e suava maravilhosamente. Um dia estava a fazer uma primeira parte numa festa perto do Alentejo, e a aparelhagem do nosso conjunto e ia servir uns fadistas que vinham de Lisboa, não me lembro quem eram. Estávamos a ensaiar e a fazer o som, eu estava com a guitarra portuguesa, de 12 cordas a distorcer, que era uma coisa encantadora, até que o senhor guitarrista me abordou e chamou-me de tudo, assassino foi o nome mais simpático, quase que me ofereceu porrada. “Você não faça isso, você está a estragar a guitarra e o fado”, e com alguma razão, mas eu era um miúdo, tinha 16 anos. E então, aquela sede de fazer sem perguntar primeiro, aquela ansiedade que é natural da idade, deixou-me muito triste com homem, com o que me chamou, com o que disse, e cheguei a casa e disse ao meu pai o que se tinha passado, ele que assinara uma folha de responsabilidade para eu poder ir tocar com as pessoas do grupo, aos 14 anos. Então o meu pai levou-me a Almeirim a um barbeiro chamado Leonel Mendrico, que era um senhor que tinha uma barbearia e que tinha sido professor do Raimundo Seixas, que foi também uma pessoa importante para mim, que me ensinou depois a tocar alguns fados. O senhor Leonel tocava um pouco de viola, bandolim e tocava muito bem guitarra portuguesa, e aprendi muito com ele. A primeira vez que me apresentei usava cabelo grande e um brinco na orelha, que tirava quando chegava a casa, sendo que ele me disse que só me ensinava se eu cortasse o cabelo. Então quando voltei, com o meu pai, de cabelo apanhado, com gel e meio escondido dentro do casaco lá tive a primeira aula. Começou por me dar umas instruções e dedilhei um tipo de corrido em Mi, primeiro e quinto grau. Quando a aula terminou para ir para casa, sentei-me lá fora na rua, porque antigamente não havia gravadores, nem coisa nenhuma, era a tradição oral, que ainda hoje defendo, e estive a praticar durante algum tempo e voltei a entrar para perguntar ao mestre se estava bem, e ele ficou admirado e começou a interessar-se por mim e ensinou-me praticamente tudo o que sabia. Mais tarde aconselhou-me a continuar com o seu melhor aluno, que era o Raimundo Seixas, que me ensinou depois a tocar fados. Embora a técnica do Raimundo, a abordagem dele não fosse a que estava de acordo comigo em termos de sonoridade, porque efetivamente eu seguia o José Nunes, que para mim foi um Deus, a tirar sons e timbres neste instrumento. Depois José Fontes Rocha e a partir daí, quando o Paredes chega à minha vida, tendo já um conhecimento dos guitarristas anteriores, tal como o Raul Nery, que eu adorava, era um acompanhador nato, uma pessoa fantástica. Venho a conhecer pessoalmente o José Luís nobre Costa uns anos mais tarde, e coincide que, ainda hoje guardo com muito amor e carinho a guitarra com que ele tocou nessa noite para mim, era a guitarra dos passarinhos, que felizmente tenho-a comigo.
Dos vários fadistas com quem já trabalhaste, quem mais te fascinou?
Ao longo deste crescimento, nós estamos sempre a crescer, não é, então um músico, um criador, criativos como somos, digamos que andamos sempre a apanhar um pouquinho das sensibilidades de cada um, e de que nos ajuda também a transformar e a melhorar o nosso conhecimento.
Efetivamente, uma das pessoas que mais influência teve na minha vida foi o Jorge Fernando e continua a ter, porque somos de uma Irmandade fidedigna. Foi ele o responsável para que eu tocasse guitarra profissionalmente e depois acabei por integrar as bandas dele na altura, desde que saiu Umbadá, Lua, o disco À Tua Porta, que é um trabalho marcante. São 38 anos de parceria, entre eles a gravação de um disco com o Fernando Maurício, o Rei.
Depois, a sorte de ter conhecido o José Pracana, de quem eu gostava imenso, da forma da abordagem dele tocar guitarra, o som que tirava, a garra com que tocava.
Ter a sorte de ter tido a Amália a tratar-me por amigo, a receber-me em sua casa, a telefonar para casa dos meus pais, a perguntar-me “venha jantar, hoje estão cá uns amigos”. Tocar para ela nos Estados Unidos, mesmo não sendo seu guitarrista, mas toquei para ela e porque ela tinha muito carinho por mim, e ter o privilégio também de ter um registo gravado em fonográfico com ela e com Jorge Fernando. São acontecimentos maravilhosos.
Depois conheço a Celeste, foi uma paixão, ouvi-la contar tantas histórias, era aprender tanto a cada momento que ela falava, como se estivéssemos a ler um livro. Acabei por tocar para ela, quase como uma ligação de mãe, algo muito especial, realmente tenho sido um privilegiado porque tenho apanhado diferentes gerações do fado. Toquei com Manuel de Almeida, gravei com ele também, com a Beatriz da Conceição, meu Deus, tantos fadistas que eu acho que faço parte destes prumos que a vida do fado me vai oferecendo.
Fiz paralelamente uma carreira como produtor, compositor, trabalhei para a Universal França com a Cristina Branco durante 10 anos, tenho a honra de dizer que por minha mão, trouxemos para Portugal um disco de platina e dois de ouro, é algo do qual muito me orgulho em ter o reconhecimento de estar no Top 10 dos compositores na Holanda e, portanto, esta coisa de levarmos a nossa cultura e enraizá-la onde quer que estejamos, é das coisas que eu sei que está no espírito de um português. Às vezes nós damos mais quando estamos fora do nosso país, não sei porquê, acho que é por uma questão de comodismo, não faço ideia. Sei que lá estava muito mais preocupado em impor a minha cultura. Digo isto muitas vezes, entre aspas, impus que exportassem este instrumento, que canta a voz de um povo e tem o nome de um país.
Qual foi o palco de maior responsabilidade que já pisaste?
Os palcos têm todos a mesma responsabilidade. Houve alguns em que eu sabia melhor o repertório e outros onde estava menos seguro. Estes são sempre os mais difíceis. E então aí, temos de contar com aquela parte da intuição e que Deus nos ajude. Mas lembro-me de uma vez estar no Olympia e ir à casa de banho, com aqueles nervos do último momento antes dos cinco minutos e por infortúnio meu, quando puxo o autoclismo parti a unha do indicador e fiquei nervosíssimo. Fui ao camarim e coloquei supercola 3 para cima da unha algo enrolado, lembro-me desse episódio ser bastante difícil, foi um momento que me marcou porque estava quase bloquear com tantos nervos.
A gravação do disco na “Linha da vida” do Camané, também teve um episódio caricato. Estava a sair de casa e fiz umas festas ao gato que a minha filha tinha trazido, um gato pequenino, e mordeu-me no dedo polegar, que começou a deitar sangue e depois infetou. Tive dois dias na Valentim de Carvalho com o Jorge Fernando e com o Carlos Bica, o produtor foi o Zé Mário Branco, e lembro-me de estar a tocar e o sangue cair sobre as cordas. Foi uma coisa tenebrosa porque o dedo inchou imenso, tinha de pôr o dedo em água quente com sal, porque estávamos a gravar. Entrávamos perto das 18h para o estúdio e saíamos por volta das 2h da manhã e enfim, intervalinho pequeno para comermos. Não havia tempo para nada. E porque naquela altura gravávamos tudo junto, não havia estas coisas de gravar a voz depois. Era deixar o grande Camané a cantar da forma sublime como faz e nós seguirmos, e depois era o take melhor e foi de facto, um disco muito importante e marcante também.
A sala do Carnegie Hall também me deu alguns arrepios, assim como Queen Elizabeth Hall. Foram salas marcantes para mim.
Fazer o concerto com a Orquestra Sinfónica du North em Amesterdão, também com a Cristina Branco, um disco de homenagem a Slauerhoff, foi também um momento feliz, e tocar com uma orquestra é sempre de uma responsabilidade muito grande.
Mas difíceis são todos os palcos, assim como fáceis, a partir do momento em que se faz com amor e se leva algum trabalho feito de casa, então depois é deixar ao sabor da intuição, receber a energia que vem do publico e retribuir em forma de amor a cada nota que se toca.
Na verdade, acompanhar e é uma forma de cavalheirismo também. Considero-me uma pessoa privilegiada, porque tenho tido esta sorte de tocar ao longo da carreira com pessoas magnificas. Como dizia o nosso querido Joel Pina, “quando uma pessoa está feliz é a mesma coisa que sair-lhe a taluda, a sorte grande”.
Falo em termos gerais, sem ferir suscetibilidades, porque todas as pessoas para quem toquei são importantes na minha vida, porque nos passam emoções e é um privilégio que nos transforma a nós e nos deixam mais ricos, isto é, acompanhar.
Se um fadista quisesse cantar Custódio Castelo, que fado serviria essa intenção?
Há um fado muito bonito que se chama fado perdição, que é uma melodia que tem dois acordes, dó e ré, o original, eu aconselharia esse fado, que está na discografia da Cristina Branco.
Existe algum álbum teu onde o sentimento saudade esteja mais presente?
De forma geral a saudade está implícita em todos eles e em tudo aquilo que faço, acho que se eu tivesse de definir o nome para a minha forma de sentir, seria exatamente saudade.
Quando toco, agora que é pertinente falar nisso, a minha forma de ser e de sentir já é um exercício de saudade. O que é que eu chamo ao exercício de saudade? É ir buscar emoções vividas e outras que não vivi, mas aquelas que não vivi serão exatamente aquelas do meu lado criativo e aquelas que eu já vivi com as pessoas de quem tenho sempre saudades, fazem parte de todos os momentos, enquanto toco. Acho que faz parte da minha forma de ser, porque às vezes eu até consigo perceber que dando dua notas eu exprimo mais saudade do que fazer quarenta, mas depende sempre da forma como as dou e é uma das coisas que falo aos meus alunos, que é muito importante, não é o que se diz, é como se diz, não é o que se toca, mas sim como se toca. As notas são todas as mesmas, mas há muitas formas de as sentir, falo da entrega, tal como quem canta. Acho que a guitarra pode dar a quem canta uma cor. Neste momento a minha abordagem é tímbrica, ou seja, tento aproximar-me timbricamente do timbre de quem canta. Portanto, eu neste momento já estou, digamos, nesta profunda dimensão de ir de encontro ao timbre e nunca ao volume ou de outras coisas.
Qual foi o ponto de partida para a criação do Curso Superior de Guitarra Portuguesa em Castelo Branco?
Vinha do Olympia de Paris com o professor Miguel Carvalhinho, que era meu músico na guitarra clássica e integrava o nosso grupo, e durante a viagem de regresso a Lisboa, esta decisão foi tomada, a convite dele, que me diz, “abriu na ESART um curso para acordeão e para outros instrumentos, e por que não também guitarra portuguesa?”. Respondi afirmativamente à genial ideia, pois era uma necessidade para o nosso país e para o desenvolvimento na abordagem do instrumento. Disse-lhe que o prof. Caldeira Cabral poderia ser uma opção interessante, sendo que me respondeu que tinha pensado em mim, e embora tivesse muito pouco tempo na altura, o processo começou assim.
Quando chegámos a Lisboa, fomos dar uma volta pelas casas de fado e realmente reparei que o fado mouraria não estava a ser tocado de uma forma como, pelo menos quando eu aprendi, e como ouvia o Raul Nery tocar e os outros grandes mestres. Pensei nesse fio condutor que os nossos guitarristas antigos deixaram, porque cada um deles escreveu um capítulo nesta história que se chama licenciatura em guitarra portuguesa, tem um pouco de todos, eu só me limitei a juntar, a colher o melhor tecnicamente depois, e desse sumo, desse néctar passar para os nossos alunos.
O que me agradou profundamente, foi também o facto geográfico de ser em Castelo Branco, no interior centro, e desde já agradeço o esforço do Instituto Politécnico de Castelo Branco, que fez para que fosse possível esta licenciatura, à ESART e aos seus diretores, o Doutor Fernando Raposo, José Filomeno Raimundo e agora o Francisco Fino, que fazem de tudo para que esta licenciatura seja um êxito, que conseguiram, porque hoje nós temos essa vitória, felizmente.
Isto foi o primeiro passo, muito há a fazer ainda pela guitarra portuguesa, por esta forma de ser e de estar, mas alguém tinha de dar este passo e eu abdiquei de algum conforto para vir viver para Castelo Branco, acolher os alunos. O primeiro aluno veio de Faro, chama-se José Alegre, foi o primeiro licenciado. E quando um aluno vem de Faro, quem sou eu para dizer que não, que na altura vivia em Almeirim, portanto, foi uma Vitória e já lá vão catorze anos, e que é um orgulho para mim ter conseguido construir uma família, sem inimigos ou concorrentes. Deve ser como uma Irmandade Universal, é assim que eu vejo a música e depois vem os instrumentos e os estilos, entre outras coisas.
Que sentimento é esse, verificar que uma boa parte dos alunos que passam pelo curso, exerçam profissionalmente a carreira de músicos, através da guitarra portuguesa?
Sim, porque temos o cuidado de dar bases aos alunos que lhes sejam suficientes para poderem depender da guitarra portuguesa, para serem, além de músicos, criativos, acompanhadores, para levarem algumas noções inclusivamente de estúdio. Outro aspeto fundamental é a formação humana, tento passar às pessoas um desenvolvimento humilde, tocar com amor, acompanhar uma voz como se estivesse a estender um tapete vermelho, para que se passei e, no caso de uma senhora, deixar-lhe umas pétalas de rosa.
Atualmente, os alunos que terminam a licenciatura podem gravar um álbum, correto?
Correto, atualmente oferecemos no espaço Fábrica da Criatividade em parceria com a Câmara Municipal de Castelo Branco e com o IPCB, a possibilidade de os licenciados registarem oito temas, quatro dos quais, o convite é serem de criação de autor e outros quatro que advêm do estudo durante a vida até à data. Depois dos temas gravados com quem quiserem à sua vontade, serão lançados numa plataforma digital através da World Music Record, que é uma editora de label do país real, onde podemos ter a nossa música no Spotify, na Amazon e por aí fora, gratuitamente, permitindo aos alunos a criação de uma apresentação de portefólio. Quem quiser também pode depois adquirir o disco físico.